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A TOMADA DE DECISÃO NO DESPORTO:
UMAPERSPETIVAPROPRIOCETIVA
DECISION MAKING IN SPORT: A PROPRIOCEPTIVE PERSPECTIVE
Ricardo Fernando Fontes Jesus Serrado1
PSIQUE • EISSN 21834806 • VOLUME XIX • ISSUE FASCÍCULO 2
1ST JULY JULHO  31ST DECEMBER DEZEMBRO 2023 PP. 120
DOI: https://doi.org/10.26619/2183-4806.XIX.2.1
Submitted on 25/01/2021 Submetido a 25/01/2021
Accepted on 22/02/2023 Aceite a 22/02/2023
Resumo
A tomada de decisão é um assunto central na discussão cientifico-filosófica contemporânea.
Como é que o ser humano decide e age tem vindo a ser um tema amplamente discutido no âmbito
das mais diversas áreas do saber, com alguns resultados interessantes, mas ainda insuficientes.
Talvez o problema mais pertinente seja saber se os pensamentos podem iniciar e conduzir a ação
e, desta forma, ativar o comando motor correspondente. Neste artigo, utilizando o desporto como
laboratório, iremos defender que a consciência e mente não podem contribuir para a decisão
e para a ação sem a consciência propriocetiva, isto é, sem os mapas motores que constrangem,
influenciam e, em certa medida, determinam a tomada de decisão, a iniciação e condução da
ação. Iremos argumentar que o corpo é o iniciador da ação, seja de um modo direto, em forma
de automatismos motores que expressam uma intencionalidade de um determinado design cor-
poral, seja de modo indireto, em forma de ideias motoras que antecipam ações motoras anterior-
mente realizadas.
Palavras-chave: tomada de decisão, ação, desporto, consciência propriocetiva, proprioceção
Abstract
Decision making is a central issue in contemporary scientific-philosophical discussion. How
the human being decides and acts has been a topic widely discussed in the most diverse areas
of knowledge, with some interesting results, but still insufficient. Perhaps the most pertinent
problem is whether thoughts can initiate and lead to action and, in this way, activate the
corresponding motor command. In this article, using sport as a “laboratory”, we will defend that
1 Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto - Portugal. E-mail: ricardoserrado@gmail.com
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mind cannot contribute to decision and action without proprioceptive consciousness, that is,
without the motor maps that constrain, influence and, to a certain extent, determine decision
making, initiation and conduct of action. We will argue that the body is the initiator of action,
either directly, in the form of motor automatisms that express an intentionality of a particular
body design, or indirectly, in the form of motor ideas that anticipate previously performed motor
actions.
Keywords: Decision-making; action; sport; proprioceptive consciousness; proprioception
A tomada de decisão no desporto: uma perspetiva propriocetiva
Saber como o ser humano inicia e conduz o seu comportamento tem sido um dos mais acesos
debates científicos e filosóficos das últimas décadas (Haggard, 2005, 2008; Libet, 1999; Wegner,
2002). O problema da tomada da decisão possui uma dimensão ontogica que nos parece evi-
dente, que é esta: o que está na origem das decisões humanas? Este assunto, por sua vez, gravita
em torno de uma questão central: pode a mente consciente iniciar a conduzir a ação ou, dito de
outra forma, pode a mente controlar o corpo? O desporto, por ser um campo em que o sujeito
tem que tomarrias decies complexas, ora automáticas ora mais deliberadas, pode servir de
laboratório para estudar este problema.
A ideia de que a mente controla o corpo é amplamente defendida pela escola cognitivista
(EC) (Bar-Eli et al., 2011; Memmert & König, 2020). A EC assenta na ideia de que os sistemas cogni-
tivos processam informação do exterior o que, consequentemente, conduz à ativação dos centros
motores do cérebro. Em poucas palavras, a EC advoga que o sujeito primeiro pensa e depois age.
O modelo cognitivista aplicado ao desporto defende, essencialmente, que um atleta realiza uma
ação motora depois de um conjunto de processos cognitivos serem ativados segundo um deter-
minado encadeamento: 1) perceção de um estímulo 2) acesso à memória 3) programação mental
e 4) execução motora (Matias & Greco, 2010).
A EC está ancorada em 2 processos cognitivos essenciais: a atenção\perceção e a memória
(Afonso et al., 2012). A atenção\perceção é a capacidade que o sujeito possui para identificar
estímulos salientes e, desta forma, captar totalmente os seus recursos cognitivos, adquirindo
desta forma conhecimento sobre o contexto (Abernethy et al., 2007; Furley & Memmert, 2012).
No âmbito do desporto, quanto maior o conhecimento em relação ao ambiente, mais apto se está
para antecipar convenientemente a ação mais apropriada. Ou seja, quantos mais dados do meio
o cérebro processar, mais soluções o sujeito terá ao seu dispor (Evans et al., 2012; Gorman et al.,
2013). Para que isso seja possível, é necessária uma memória onde está depositada a informação
captada pela atenção\perceção. A memória é apresentada neste modelo como um repositório de
longo termo onde são arquivadas todas as situações salientes percecionadas pelo sujeito, às quais
o indivíduo pode e deve aceder sempre que necessário (Afonso et al., 2012; Farrow & Raab, 2007;
Gorman et al., 2013). Por conseguinte, para que uma boa ação possa ser realizada, o sujeito tem de
percecionar, aceder à sua meria de longo termo e depois agir num processo em que as ideias
- conscientes ou subconscientes – são as iniciadoras dos atos motores (Schack & Hackforts, 2007).
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A tomada de decisão no desporto: umaperspetivapropriocetiva
Um dos princípios centrais da EC é o conceito de representação. Segundo a EC, o sujeito
decide e age em fuão de representações do mundo exterior que ficam codificadas na memó-
ria. Ao percecionar o meio, o sujeito cria representações simbólicas dessa realidade e programas
de ação, que depois pode utilizar para agir (Bar-Eli et al., 2011; Evans et al., 2012). Por exemplo,
rios estudos, demonstram que atletas especialistas conseguem mais facilmente prever o des-
fecho de uma ação relacionada com a modalidade que praticam porque possuem representações
mnemónicas de pistas que sinalizam como a ação irá decorrer (Ashford et al., 2021; Fujii et al.,
2015; Williams, 2020; Williams & Ward, 2007). Esta perspetiva defende, portanto, que o corpo é
comandado pela mente atras do conhecimento cognitivo que esta adquire do meio, guarda na
meria e permite antecipar e agir em conformidade (Afonso et al., 2012; Farrow & Raab, 2007).
A EC defende, lato sensu, que a ação motora é previamente pensada/representada, podendo
essa representação ser consciente ou não antes dos sistemas motores serem acionados. Dito de
outra forma, a ação é originada num processo mental que controla o corpo (Schack e Hackforts,
2007) pelo que a ação é a expressão motora dos processos mentais que a pensaram, iniciaram
e motivaram (Matias & Greco, 2010; Monteiro, 2000). Quando, por exemplo, um defensor num
determinado desporto antecipa o comportamento do atacante, constrangendo-o e reduzindo a
eficiência da sua primeira ação, este tem que possuir conhecimento que permita desencadear
uma ação motora que ludibrie o primeiro o que, segundo a EC, é feito por comportamentos deli-
berados (Furley et al., 2015; Furley & Memmert, 2013). Nyberg (2015), no mesmo sentido, demons-
trou que esquiadores profissionais encetam em controlo consciente dos seus movimentos, de
modo a melhor controlar os seus movimentos e a velocidade, assim como outros autores têm
demonstrado que a consciência é de extrema imporncia para a correção de comportamentos
automáticos, intervindo deste modo quando a ação não tem o sucesso desejado (Furley et al.,
2015; Masters & Maxwell, 2004). Mesmo que a decisão seja feita em função de processos mentais
heurísticos e, portanto, automáticos, segundo a EC os mesmos exigem invariavelmente um pro-
cessamento cognitivo – um pensamento que identifica uma oportunidade válida e que compara
com uma outra – para iniciar a ação (Bar-Eli et al., 2011). Por isso, não obstante a ação poder ser
intuitiva, esta obriga a um processo de 1) atenção 2) escolha e 3) ação (Afonso et al., 2012; Schack
& Hackforts, 2007).
Ao colocar a mente como operadora da decisão e o corpo como um organon que segue as
instruções do centro decisório, a EC acaba por reproduzir um certo dualismo cartesiano que,
embora se apresente numa perspetiva moderna, não nos parece válido para explicar uma rea-
lidade que se nos afigura una. Ou seja, a interação top-down entre mente-corpo proposto pela
EC manifesta um dualismo no qual o corpo é apresentado sem intencionalidade – um género de
fantoche guiado e orientado por uma mente que encerra todo o poder de controlar as decies o
que nos parece estar longe da forma como o sujeito decide e age (Damásio, 2013; Espinosa, 1992;
Haggard, 2005, 2008).
Em contraste com a EC, a escola ecológica (EE) defende que a decisão surge através de uma
perceção que está acoplada à ação, pelo que o sujeito decide em função de pistas disponíveis no
ambiente (affordences) que são, no momento, percecionadas e automaticamente transformadas
em ação sem necessária mediação representacional. Passos et al. (2012) por exemplo, verificou
que, no rugby, distância do defesa da linha lateral dentro de uma situação de 2 (atacante) x 1
(defensor) influenciou a decisão do atacante de passar, o que é tomado como evidência para a
tomada de decisão como um processo emergente do contexto. Essencialmente, enquanto a EC
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separa o processo de ação entre perceção e decisão, para a escola ecológica (EE) a ação está
acoplada na perceção, pelo que o sujeito pode decidir sem que os processos cognitivos repre-
sentacionais iniciem (Ashford et al., 2021) a ação motora (Araújo et al., 2017; Ashford et al., 2021;
Basevitch et al., 2020; Correia et al., 2011; Matias & Greco, 2010). Ou seja, a EE defende que a deci-
são é um processo não-representacional visto a perceção e a ação serem processos embutidos
no meio e incorporados num sujeito que interfere diretamente no ambiente sem necessidade de
representações simbólicas (Araújo et al., 2017; Basevitch et al., 2020).
Em suma, ao contrário da EC, a EE defende que não existe nenhuma estrutura central no
interior do organismo geradora de ação porque esta é realizada pela interação entre cérebro,
corpo e ambiente (Araújo et al., 2017). A EE, ao contrário da EC, tem vindo, portanto, a integrar
uma perspetiva incorporada da tomada de decisão, ao colocar o corpo como um dos elementos
centrais na ação retirando o cérebro como operador central da ação. A EE é uma teoria não-dua-
lista, contudo, não dá respostas específicas sobre como a interação corpo-ambiente pode desen-
volver comportamentos sem representações internas.
Uma teoria propriocetiva da decisão
Consideramos que, embora ambas as perspetivas analisadas possuam conclueslidas,
elas apresentam alguns problemas que devem ser discutidos: 1) como é que pensamentos cons-
cientes podem iniciar ações motoras ou, dito de outra forma, como é que ideias conscientes, que
não têm massa, nem forma, podem ativar músculos e sistemas fisiológicos? 2) como é que a mente
pode controlar o corpo – o mesmo é dizer, de que forma o psicológico pode ativar o fisiológico? 3)
a EE não explica como é que o ser humano decide com um sistema não-representacional, isto é,
como é que o sujeito interage com o ambiente sem possuir informação representacional do corpo
e do mundo.
Limites da consciência na decisão
Comecemos pela primeira questão: pode um pensamento consciente iniciar uma ação
motora? Pode uma ideia instruir o corpo a agir? Pode, enfim, a consciência dar início a uma ação?
As neurociências têm vindo a observar que a consciência que desperta quando acordamos
e que nos acompanha durante o estado vígil todo o dia é uma parte ínfima do que está a acon-
tecer no cérebro, porventura, a parte menos decisiva no processo decisional (Bode et al., 2014;
Eagleman, 2012; Fried et al., 2011; Gazzaniga, 2011; Jeannerod, 2006; Soon et al., 2013; Wegner,
2002). Podemos definir a consciência como, essencialmente, aquilo que nos permite conhecer e
experienciar fenomenologicamente a realidade. É, por isso, um processo que exige tempo e uma
computação neuronal exigente e demorada, que o processo de conhecer e de experienciar exige
a concertação de uma série de informação sensorial de modo a criar uma homogeneidade sen-
sorial coerente no sujeito (Alves, 2013). A visão, por exemplo, é totalmente processada por sis-
temas subconscientes especializados na codificação de estímulos luminosos vindos do exterior
do corpo, os quais trabalham em complementaridade para criar uma representação mental coe-
rente do objeto visualizado que surge apenas cerca de 0,2 segundos após a entrada do estímulo
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A tomada de decisão no desporto: umaperspetivapropriocetiva
na retina. Isto significa que estamos sempre atrasados em relação àquilo que percecionamos
(Eagleman, 2017).
Nos anos 80 doculo XX, o neurocientista Benjamin Libet demonstrou que a vontade cons-
ciente de agir era, sistematicamente, precedida em cerca de 0,5 segundos de atividade neuronal
subconsciente no córtex motor, o que parecia indicar que a consciência era apenas um epifenó-
meno que nada tinha que ver com o início da ação (Alves, 2013; Libet, 1999). Sob este ponto de
vista, a consciência teria apenas a fuão de conhecer e de promover sentimentos de agency às
decisões fabricadas nos bastidores (Eagleman, 2012). É a opinião do psicólogo Daniel Wegner e do
neurocientista Michael Gazzaniga, para quem as ações são iniciadas e conduzidas por sistemas
subconscientes acompanhados pela consciência como mera espectadora (Gazzaniga, 2011; Weg-
ner, 2002). Segundo esta perspetiva, a ação é fabricada numa parte do cérebro e a interpretação
dessa ação é processada numa outra. O neurocientista Patrick Haggard, seguindo a metodologia
de Libet mas com tecnologia mais avançada, demonstrou que os córtices motores e parietais são
ativados antes da consciência da ação entre 0,3 e 0.9 segundos (Haggard, 2005, 2008), enquanto
outros cientistas chegaram mais recentemente às mesmas conclusões (Bode et al., 2014), conse-
guindo alguns deles anteciparem a decisão do sujeito em mais de 7 segundos através da leitura
de padrões neuronais subconscientes (Fried et al., 2011; Soon et al., 2013).
Em suma, um número considerável de experiências demonstrou que os pensamentos e as
imagens mentais não iniciam ações, visto o cérebro produzir a decisão e a vontade de agir antes
de qualquer pensamento surgir na consciência do sujeito. Ora, se não é a consciência, o que é que
está na origem da decisão?
A cartografia neurofisiológica e as imagens mentais
A característica mais distinta dos cérebros é a extraordinária capacidade de criar mapas
– mapas do meio e mapas do corpo. “Quando o cérebro cria mapas, informa-se a si pprio
(Damásio, 2010, p. 89). Do ponto de vista evolutivo, o aparecimento dos cérebros surge para
melhorar a eficiência da regulação homeostática dos corpos, pelo que o mapeamento do corpo
é uma das prioridades do sistema nervoso central – senão mesmo a sua principal prioridade.
Océrebro es, portanto, sistematicamente a mapear o corpo, de modo continuo, pelo que a rela-
ção entre cérebro-corpo envolve um extremo grau de dependência e, precisamente por isso, o
rebro apenas pára de mapear o corpo na morte. Mesmo em coma, o cérebro mapeia o corpo,
mesmo que esses mapas não tenham qualquer manifestação mental consciente. A informação
contida nos mapas cerebrais é usada de modo a orientar o comportamento e as ações, ou seja, os
mapas neuronais são o meio segundo o qual os organismos com sistema nervoso interagem com
o mundo. Osmapas neuronais não são estáticos, mas, pelo contrio, extremamente voláteis de
modo a dar resposta às alterações do meio e às subsequentes ações que são necessárias realizar
(Dasio, 2010).
A consequência desta cartografia neuronal são as imagens mentais – representações sen-
soriais do meio, mas também representações interoceptivas e propriocetivas do corpo. As ima-
gens mentais consistem em perceções sensoriais (imagens visuais, auditivas, táteis, entre outras),
perceções interoceptivas (sentimentos e emoções) e perceções propriocetivas (imagens motoras),
isto é, as imagens mentais correspondem à experiência mental da cartografia neurofisiológica
(Damásio, 2010; Gallagher, 1986). Não pretendemos dualizar o cérebro da mente mas apenas
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fazer notar que os mapas cerebrais e as imagens mentais são processos distintos, semelhante à
diferença entre o batimento fisiológico do coração e o som que daí emerge. Podemos experienciar
mentalmente o som do batimento cardíaco em forma de imagem mental, mas não temos cons-
ciência de como é que o coração exerce a sua função nem temos como experienciar toda a fisio-
logia cardíaca, da mesma forma que não podemos ter consciência do funcionamento integral dos
mapas neuronais mas apenas de algum do seu resultado final. De entre os mapas do corpo, estão
os mapas motores, que são perceções internas dos nossos próprios movimentos (Gallagher, 1986).
Iremos defender que muitos dos mapas motores são inatos e determinados por uma estabili-
dade genética, e que são estes mapas motores a origem de uma primeira consciência que desig-
naremos de propriocetiva e que está no cerne de muitas decisões e ações.
Os mapas motores inatos
Os mapas motores possuem uma organização inata. Quando nascemos possuímos, desde
logo, instruções genéticas que determinam, em grande medida, uma série de características do
corpo (altura, composição do sistema músculo-esquelético, sensibilidade propriocetiva, etc.),
bem como programas motores que nos permitem movimentarmo-nos e agirmos no meio (Dela-
field-Butt & Gangopadhyay, 2013; Gandevia et al., 2018; Missitzi et al., 2004; Missitzi et al., 2018;).
Existe alguma discussão sobre quando surge consciência dos recém-nascidos, mas é essencial-
mente comum a ideia de que os mesmos adquirem consciência concetual, sensivelmente, entre
os 15 e os 20 meses (Bahrick, 1995), altura em que atingem a capacidade de se reconhecerem
ao espelho, de preservarem memórias e de manifestarem algum conhecimento simbólico-con-
cetual, etc. No entanto, alguns estudos demonstram que bebés recém-nascidos com uma hora
de vida conseguem imitar expressões faciais de adultos de uma forma intencional e corrigi-las
quando é necessário adaptá-las aos comportamentos observados (Meltzoff, 2007a, 2007b). Estes
comportamentos miméticos apenas são possíveis se os primeiros possuíram, por um lado, uma
proto-consciência (ie. uma consciência propriocetiva) que lhes ofereça alguma sensação de iden-
tidade, e por outro, se tiverem programas motores inatos que permitam a realização dessas ações
que envolvem já um elevado grau de complexidade e agilidade motora (Gallagher, 2006; Jeanne-
rod, 2003). Para além destes comportamentos miticos, a existência de crianças que sofrem de
membro fantasma, tendo sido amputadas à nascença, parece sugerir, a presença de mapas moto-
res inatos. Se os mapas motores fossem, apenas, construídos pela experiência, estas crianças
amputadas não sofreriam da síndrome (Gallagher, 2006). No mesmo sentido, as áreas neuronais
necessárias para o mapeamento do corpo e para a emerncia de uma consciência propriocetiva
– como o hipotálamo, córtices somatosensoriais, tronco cerebral e córtex cingulado - estão nota-
velmente ativas em recém-nascidos (Damásio, 2013). Curiosamente, nas 8 semanas de gestação,
já existe uma forte conexão entre o sistema músculo-esquelético, a espinal medula e o tronco
cerebral, o que favorece a nossa ideia de que os seres humanos já nascem com uma consciência
propriocetiva visto as estruturas neuronais para ela surgir estarem suficientemente desenvol-
vidas (Delafield-Butt & Gangopadhyay, 2013). Por conseguinte, parecem existir desde o início do
desenvolvimento, certos aspetos da estrutura e das funções do corpo que se encontram gravados
em circuitos neuronais e que geram comportamentos coordenados e complexos (Damásio, 2010).
Os mapas motores inatos permitem, desde logo, formar as primeiras imagens do corpo na
relação com o meio e, a nosso ver, possuir um primeiro sentimento de exisncia – o mesmo
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A tomada de decisão no desporto: umaperspetivapropriocetiva
é dizer uma consciência propriocetiva (um sensing of ownership de um corpo). Desde o início
da vida, em cada movimento que corpo realiza, o cérebro produz uma cópia aferente – isto é,
representações mentais das ações do corpo. Por conseguinte, sempre que um comando motor
determina uma ação, é feita uma cópia aferente que permite ao sujeito representar mentalmente
esse movimento e, desta forma, anteci-lo sempre que o contexto exigir (Jeannerod, 2006). Sem
programas motores inatos e sem uma mínima consciência do seu corpo (i.e., sem uma consciên-
cia propriocetiva), seria difícil explicar como crianças com uma hora de vida conseguem imitar
expreses faciais de adultos, e como conseguem ter comportamentos intencionais, não em
relação ao meio, como em relação ao seu corpo (Meltzoff, 2007a, 2007b). Sugerimos que o recém-
-nascido nasce com uma consciência propriocetiva que lhe permite, pelo menos, sentir e saber
de forma não concetual que tem um corpo que é o ponto de referência em relação aos outros e ao
mundo (Gallagher, 2006). Dito de outra forma, consideramos que é a consciência propriocetiva –
isto é, as imagens motoras que resultam de mapas motores inatos – o primeiro sistema a informar
o sujeito que possui uma identidade. A nosso ver, a consciência propriocetiva é inata e é ela que
informa o sujeito da sua existência, da sua singularidade e de que é um agente no mundo (Melt-
zoff, 2007b). Antes do “penso, logo existo” cartesiano (Damásio, 2011) e do “sinto, logo existo
damasiano (Damásio, 2010, 2013) parece existir um “movo-me, logo existo.
A consciência propriocetiva
A proprioceção é a capacidade imediata de sentir e de localizar o corpo no espaço na relação
com o meio. A proprioceção manifesta-se na sensação de movimento, de posição, de velocidade,
de equilíbrio e de força do corpo - processos motores que estão mapeados no cérebro desde a
nascença (Veiga & Cobo, 2021).
O corpo possui recetores mecânicos na pele, nos músculos, nos tendões e nos ligamentos que
enviam sinais para o cérebro e que possuem informação propriocetiva. Isto é, estes recetores
como que traduzem sinais de eventos do meio que interagem e modificam o corpo, primeiro em
sinais fisiológicos, e depois, em sinais neuronais, informando deste modo o organismo, não só
sobre que melhor ação cinestética é necessária, como sobre que postura o organismo deve adotar
perante determinadas circunstâncias (Veiga & Cobo, 2021). Em certa medida, a consciência pro-
priocetiva corresponde às mudaas músculo-esqueléticas exigidas pelo meio, que depois são
mapeadas neuronalmente (em mapas motores) e apresentadas ao sujeito em forma de imagens
motoras (Riemann & Lephart, 2002a, 2002b). Em poucas palavras, os mapas motores integram e
recebem do corpo informação dos sensores do corpo, da pele, dos músculos, do esqueleto, etc.
que, depois, se manifestam numa intencionalidade corporal e, subsequentemente, em imagens
motoras que podemos designar de imagens propriocetivas.
A consciência propriocetiva permite o surgimento dos qualia motores que informam o sujeito
de que o corpo lhes pertence e quais as ações que são possíveis de ser realizadas. Esta informação
é sentida através de um sensing of ownership de um corpo que existe no espaço e que, ao mesmo
tempo, se distingue do ambiente mas que interage com ele (Missitzi et al., 2018). Vários estudos
dão suporte à nossa ideia. Salomon et al. 2013) demonstrou que a propriocão desempenha uma
função crucial na consciência visual, Farrer et al. (2003), demonstrou que a proprioceção é critica
no reconhecimento das pprias ações assim como das ações dos outros, ao passo que Costantini
e Haggard (2007), Jeannerod (2003) e Tsakiris et al. (2005) demonstraram que a proprioceção é
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nuclear para o sentimento de ownership de um corpo. Não obstante a consciência propriocetiva
não ser uma consciência concetual e reflexiva, a consciência propriocetiva participa na cons-
ciência concetual sempre que uma imagem motora capta a luz da consciência (Gallagher, 2006;
Veiga & Cobo, 2021).
A consciência propriocetiva que sugerimos tem afinidades com o proto-eu defendido por
António Damásio. O proto-eu damasiano é um primeiro sentimento de existência ancorado num
conjunto de pades neuronais, possibilitado através dos primeiros sinais enviados do corpo para
o cérebro que emergem na mente em forma de sentimentos de fundo (Dasio, 2013). O proto-
-eu é um processo subconsciente que serve de referência ao organismo, não de intérprete, pelo
que está apoiado numa serie de estruturas que mapeiam o corpo ininterruptamente: o tronco
cerebral que cartografa sinais do corpo, o hipotálamo que constrói mapas do corpo e a insula
que representa-os em forma de sentimentos o corpo. De particular nota é o facto comprovado do
sujeito entrar em coma se a parte posterior do tronco cerebral – que processa sinais vindos do
corpo e para o corpo - for lesada (Damásio, 2013). Ou seja, dito de outra forma, se o cérebro deixar
de receber sinais vindos do seu corpo, o resultado é a perda de consciência. Porquê? Provavel-
mente porque, por um lado, o conteúdo que habita as nossas mentes em forma de pensamentos
vem do corpo, e por outro, porque a consciência perdeu a sua referência e o seu elemento de
estabilidade – o corpo. O proto-eu damasiano surge, portanto, quando informação homeostática
é transformada neuronalmente em sentimentos, os quais são experienciados por meios intero-
cetivos (Damásio, 2010). A nossa proposta é que o proto-eu é informado interocetivamente por
dispositivos homeostáticos em forma de sentimentos de fundo mas, ao mesmo tempo, que esse
proto-eu é, igualmente, informado por informão propriocetiva, nomeadamente pelo sistema
vestibular, pelo sistema musculo-esquelético e pela pele. Ou seja, enquanto Damásio considera
que o proto-eu é um sentimento de fundo de posse de um corpo que sente (Damásio, 2011), nós
sugerimos, sem invalidar essa ideia, que a consciência propriocetiva corresponde a uma sensa-
ção de posse de um corpo que, ao agir, adquire uma proto-consciência que existe. À consciência
interocetiva damasiana julgamos ser necesrio acrescentar uma consciência propriocetiva.
Dasio coloca o tronco cerebral, anteriormente associado a aspetos comportamentais mais
primitivos, no amago da consciência, nomeadamente ao nível de funções cognitivas superiores,
como a memória e atenção mas, mais importante do que isso, como eixo central de comunicação
entre o corpo e o cérebro, o que é crítico para o surgimento da consciência. Esta função de esta-
ção informativa entre o corpo e o cérebro, permite ao tronco cerebral integrar os sinais do corpo
e cartografá-los no cérebro e, ao mesmo tempo, transmitir informação do cérebro para o corpo
– o que possibilita o processamento de informação do corpo, que é traduzida neuronalmente em
sentimentos e em imagens motoras (Dasio, 2010). Enquanto Damásio considera o tronco cere-
bral uma estrutura crucial porque permite o surgimento de sentimentos que promovem uma pré-
-consciência (ou uma consciência interocetiva), nós sugerimos que o tronco cerebral possibilita o
surgimento de imagens motoras que promovem, a par com outros sistemas, o surgimento de uma
consciência propriocetiva. Curiosamente, Delafield-Butt e Gangopadhyay (2013) demonstraram
que o tronco cerebral é uma estrutura que contribui para a consciência propriocetiva através
do processamento de informação do sistema vestibular e do sistema musculo-esquelético, o que
conduz a um sensing of ownership corporal. Sugerimos que a capacidade do tronco cerebral em
processar informação do corpo faz com que, ainda antes do surgimento de uma consciência con-
cetual, a mente seja povoada por imagens e pensamentos motores que não só são utilizados para
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as primeiras experiências no meio, como ainda podem promover uma consciência propriocetiva.
Neste sentido, o sujeito cria as suas primeiras ideias e crenças do mundo através dos mapas moto-
res que permitem a interação do seu corpo com os objetos. Advogamos que certas ações que estão
enraizadas no cérebro de uma forma inata são transformadas nas primeiras imagens mentais
dessas ações através do tronco cerebral e dos córtices motores, que depois são enriquecidas por
outras áreas neuronais, como o neocórtex (Delafield-Butt & Gangopadhyay, 2013).
Em suma, sugerimos, que quando o sujeito começa a ter as suas primeiras experiências con-
cetuais, alguns meses depois de vir ao mundo, ele já possui uma consciência propriocetiva que o
informa que é um ser com corpo, pelo que a consciência concetual está totalmente incorporada
na consciência propriocetiva. Quando a consciência concetual surge e permite conhecimento
mais amplo e mais explicito, ela é de imediato informada que existe um corpo à qual pertence.
Por isso, todas as ideias, pensamentos e sentimentos estão de certo modo reféns de uma cons-
ciência propriocetiva que os informa e restringe.
Estabilidade propriocetiva
A estabilidade é fundamental para a vida. Sem estabilidade, estrutura e leis, a vida não seria
possível (Damásio, 2010). A consciência exige o mesmo tipo de estabilidade – uma estabilidade
que permita a emergência de uma identidade una e articulada. Segundo António Dasio, a
estabilidade que é necessária para o surgimento de uma consciência é oferecida por um corpo
que serve de referência para que uma identidade una possa emergir (Dasio, 2013). É uma
estabilidade que podemos designar de interocetiva, porque é através dos sinais homeostáticos
em forma de imagens– isto é, dos sentimentos - que o individuo sente e sabe que existe.
A nossa proposta defende que essa estabilidade pode ser conseguida, também (e quiçá antes),
pela estabilidade propriocetiva – isto é, pelo sensing of ownership de um corpo. Apesar de o corpo
evoluir e se transformar significativamente ao longo da vida, o seu design é inato e relativamente
estável ao longo do tempo. Como refere Damásio “Ao longo do crescimento, da idade adulta e até
da senescência, o plano (ou design) fundamental do corpo mantém-se largamente inalterado”
(Damásio, 2013, p. 176). Existe “um Bauplan para a vida e os nossos corpos são um Bauhaus
(Damásio, 2013, p. 180). Dito de outra forma, apesar do corpo evoluir e se modificar ao longo
da vida, as instruções fisiológicas e morfológicas, que se manifestam na proprioceção desde o
começo da vida, são em grande parte determinadas geneticamente o que, a nosso ver, garante
a estabilidade necessária para fazer emergir uma consciência. (Delafield-Butt & Gangopadhyay,
2013; Gandevia et al., 2018; Missitzi et al., 2018). Queremos, portanto, sugerir que a estabilidade
necessária para a emergência de uma consciência assenta, em grande medida, num programa
genético que determina certas características fisiológicas e morfológicas (Missitzi et al., 2018)
que se manifestam numa consciência propriocetiva o que, por sua vez, é traduzido em ideias,
pensamentos e intenções.
Vários estudos parecem dar força à nossa hipótese. Missitzi et al. (2018) demonstrou que a
proprioceção possui uma dimensão genética considerável, que explica cerca entre 60 a 77% da
diferença na sensibilidade propriocetiva entre indivíduos. Também diferenças ao nível da altura,
da força, da distribuição de fibras, da coordenação neuromuscular, da comunicação nervosa,
do controlo e aprendizagem motores são, em grande medida, determinadas geneticamente em
percentagens acima dos 75% (Gandevia et al., 2018; Missitzi et al., 2004; Missitzi et al., 2018) o que
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ajuda a assegurar a estabilidade necessária. A coordenação neuromuscular, que se estima ser
cerca de 87% genética (Missitzi, et al., 2004), é de particular interesse em atividades que exijam
habilidades técnicas acentuadas, como os desportos de bola coletivos, pelo que podem ajudar a
explicar a extrema habilidade técnica que certos atletas, como Lionel Messi ou Michael Jordan
possuem ou possuíam no domínio dos seus respetivos jogos. Isto significa, por um lado, que as
pessoas possuem habilidades propriocetivas distintas, fundadas numa dimensão genética signi-
ficativa que confere estabilidade ao corpo, e por outro, que as ações e decisões dessas pessoas
está dependente dos seus sistemas propriocetivos (Missitzi et al., 2004).
Em suma, sugerimos que o design do corpo, programado em grande parte geneticamente, ofe-
rece por um lado a estabilidade para o surgimento, primeiro de uma consciência propriocetiva e,
depois, de uma consciência concetual, e por outro, promove um quadro de referência motor que
é decisivo na decisão e na ação do sujeito. Advogamos também que designs corporais conduzem
a decies e ações distintas e, subsequentemente, a imagens mentais diferentes entre indivíduos.
Consciência propriocetiva e ação
Julgamos estar aptos para responder ao problema central que motivou este artigo: de que
forma o sujeito decide e age? Sugerimos que é a consciência propriocetiva que está na origem da
ação.
Propomos que é intencionalidade do corpo fundada num design genético estável que pro-
move toda a gama de ações de um determinado sujeito e, como vimos, permite o surgimento de
um primeiro nível de consciência. O corpo surge-nos, nos primeiros momentos de existência,
como fonte e poder de ação pelo que antes de possuirmos um sentimento de agência e de um eu
concetual, temos um sensing que possuímos um corpo com determinadas potencialidades e com
uma intencionalidade intrínseca ao seu design (Gallese & Corrado, 2010). Esta intencionalidade
corporal es sustentada, em grande parte, em programas motores que estão cartografados nos
circuitos das áreas pré-motoras e parietais, as quais, não só contribuem para a ação, como para
o surgimento de uma consciência propriocetiva de corpo. Ou seja, consideramos que as áreas
motoras do cérebro humano não contribuem apenas para a ação do sujeito de forma isolada,
mas que essa atividade está, em simultâneo, envolvida no surgimento de uma intencionalidade
subjetiva e nos primeiros sentimentos de self – primeiro através de uma dimensão propriocetiva
e, depois, de uma dimensão cognitiva e concetual. Com isto não pretendemos afirmar que os
sistemas motores são suficientes para o sentimento de self. Advogamos que estes circuitos consti-
tuem os pré-requisitos para o primeiro sentimento em forma de consciência propriocetiva, o que
não deve ser confundido com as experiências completas de agência e de self, isto é, com a cons-
ciência simbólica e concetual. Algumas evidências dão suporte a esta ideia. Várias experiências
demonstraram, de forma consistente, que a atividade neuronal dos córtices pre-motores e parie-
tais são responsáveis, tanto pelos comandos motores (pelos movimentos) como pela vontade de
agir (Bode et al., 2014, 2016; Fried et al., 2011; Haggard, 2005, 2008; Libet, 1999; Soon et al., 2013).
Segundo as palavras de Patrick Haggard: “Preparatory activity in the motor areas of the brain initi-
ates action, and produces a conscious sensation of intention as a correlate” (Haggard, 2005, p. 291).
Estes resultados parecem sugerir que a ação não pode ser separada de uma intencionalidade
corporal que é, posteriormente, sentida pelo sujeito de forma consciente. Por outro lado, estu-
dos indicam que lesões nos córtices p-motores e parietais podem provocar ilusões do corpo e
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A tomada de decisão no desporto: umaperspetivapropriocetiva
sentimentos de desconexão total em relação ao corpo, o que afeta os sentimentos de agência e de
self, pelo que lesões nos circuitos motores não impedem, apenas, ações motoras mas provocam
problemas ao nível da consciência propriocetiva, o que afeta o sentimento de self (Gallese & Cor-
rado, 2010). Importa, no entanto, referir que a vontade de agir (isto é, o sentimento) que parece
surgir com a ativação dos córtices motores, não deve ser confundida com a experiência da von-
tade de agir (ou seja, a consciência do sentimento), que parece estar associado à ativação de siste-
mas não-motores cuja função parece ser interpretar as ações e criar uma narrativa coerente dos
atos (Gazzaniga, 2011; Wegner, 2002).
Uma boa base de evidência chega-nos, também, pelos estudos de alguém que possui a sua
consciência concetual intacta mas tem a sua consciência propriocetiva comprometida? Ian
Waterman teve uma severa neuropatia sensorial na qual as largas fibras abaixo do pescoço fica-
ram lesadas devido à doença. Como resultado, ele perdeu quase toda a consciência propriocetiva
(embora ainda tenha alguma), o que significa que perdeu uma boa parte da informação cinética,
muscular, articular, vestibular, etc. Ian ainda é capaz de andar e de se movimentar, mas não o
consegue fazer de uma forma espontânea, automática, económica ou pragmática. Ao perder o
sensing of ownership do corpo, Ian precisa de um enorme esforço adicional, nomeadamente do
sistema visual, para conseguir navegar pelo mundo. O seu corpo perdeu uma boa parte da sua
intencionalidade, o que limitou extraordinariamente as suas ações. (Gallagher, 2006). Não só por-
que não sente o seu corpo, como também porque não o controla de forma espontânea, Ian possui
uma consciência alterada de si. Uma consciência que necessita de ser informada da existência de
um corpo pelo sistema visual, quando essa consciência, noutras situações, é informada automa-
ticamente através de sistemas propriocetivos (Gallagher, 2006).
O design de corpo e a ação
Como temos vindo a enfatizar, à medida que o recém-nascido interage com o meio, o seu
primeiro conhecimento é de que tem um corpo que possui determinadas faculdades – diríamos
mesmo um certo design com certas potencialidades e limitações. Este design, por sua vez, mani-
festa-se nos mapas motores, nas imagens motoras e, subsequentemente, na consciência proprio-
cetiva. Mas o que queremos dizer com design do corpo?
Qualquer ser humano possui características fisiológicas e morfológicas, em grande parte
determinadas geneticamente, como altura, dimensão e forma dos membros, cumprimento do
tronco, centro de gravidade, e composição de sistema músculo-esquelético – i.e., dimensão
dos músculos e “tipo” das fibras musculares, quantidade de fibras musculares rápidas e lentas
dimensão e eficiência das articulações e ligamentos, velocidade de contração muscular, elas-
ticidade muscular, geometria dos ossos, nomeadamente de algumas estruturas cruciais como
a anca, resistência da cartilagem, coordenação neuromuscular entre outros fatores (MacArthur
& Kathryn, 2005; Neeser, 2009; Riemann & Lephart, 2002a). Ora, estas características morfo-fi-
siológicas constituem uma boa parte do design do corpo e manifestam-se, ora através de mapas
motores ora através de imagens motoras que o sujeito experiência em forma de pensamentos e
ideias. Dito de outra maneira, o design do corpo es gravado na consciência propriocetiva que se
manifesta de duas formas: ou em ações motoras ou em ideias motoras.
Nos primeiros anos de vida, a consciência propriocetiva deverá conter, naturalmente, pouca
informação motora. Com o tempo, ao interagir com o meio através do movimento do seu corpo
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e em fuão das alterações morfo-fisiologicas que vai sofrendo mas que são, em grande parte,
determinadas geneticamente, o sujeito vai adquirindo conhecimento implícito sobre a natureza e
a intencionalidade do seu corpo o que, gradualmente, se transforma em conhecimento explicito
através de imagens motoras – o mesmo é dizer que a consciência propriocetiva pode torna-se
concetual quando o sujeito consegue ter uma imagem de ação consciente. A intencionalidade do
corpo está, portanto, enraizada na sua natureza – isto é, nas suas características morfo-fisiolo-
gicas que são expressas e acedidas pela consciência propriocetiva mas que podem ser acedidas
concetualmente pela consciência concetual. Dito de outra forma, o sujeito começa por ter, pri-
meiramente, a consciência propriocetiva sobre o design do seu corpo e, posteriormente, começa
a ter um conhecimento concetual (em forma de ideias) sobre o design do seu corpo.
Isto permite ao sujeito, não só agir de um modo automatizado (consciência propriocetiva),
como ainda antecipar, prever e ambicionar determinados movimentos e ações (consciência con-
cetual). Por exemplo, informação originada dos músculos e dos tendões do pescoço integrados
com os sensores de visão e audição, permitem ao sujeito mover-se e adaptar o seu corpo de modo
totalmente subconsciente, iniciando desta forma uma ação apenas possível pela consciência pro-
priocetiva (Delafield-Butt & Gangopadhyay, 2013). No mesmo sentido, ao arremessar uma bola,
determinadas sequências de ativação muscular ocorrem nos músculos para garantir alinha-
mento corporal ideal e a compressão necessária para que a estabilidade das articulações sejam
fornecidas, o que depois é percebido conscientemente (Riemann & Lephart, 2002a). Durante o
comportamento direcionado em relação a qualquer objetivo, como pegar numa caixa enquanto
se caminha, antes da consciência concetual adquirir conhecimento da tarefa, a consciência
propriocetiva adopta providências para adaptar o programa motor à tarefa, ajustando-se às
mudaas que ocorrem no ambiente externo (solo irregular, por exemplo) e no ambiente interno
(mudança no centro de massa devido à carga) (Riemann & Lephart, 2002b). Um outro exemplo
pode ser verificado no âmbito da música. Como refere Alicia Acitores, quando o músico está a
tocar o seu instrumento, as suas ações são monitorizadas pela consciência propriocetiva: “so that
when playing the piano, we regulate the position of the arms, hands, and fingers by proprioception,
and control movements of the torso and head” (Acitores, 2011, p. 219).
Consideramos que a mente reproduz em ideias a intenção do corpo e a consciência con-
cetual permite a experiência dessa intenção em forma de ideias sentidas (Gallese & Corrado,
2010). Que intenção é essa? E se, como questiona Damásio, a intenção de viver tão humana, expe-
rienciada conscientemente, não é mais do que as vontades primitivas inscritas e determinadas
geneticamente em cada célula do nosso corpo? (Damásio, 2010). De facto, “Em muitos aspetos,
um organismo unicelular é a antevisão daquilo que um organismo singular como o nosso veio
a ser” (Damásio, 2010, p. 53). O fisofo Hubert Dreyfus considera que a intencionalidade cor-
poral manifesta a natureza (ou design) do corpo na procura da superação dos desafios do meio
(Dreyfus, 2000), o que perfilhamos. No século XVIII o filósofo Bento de Espinosa designou esta
intencionalidade de conatus, que tem profundas afinidades com o que sugerimos. O conatus é o
esforço que cada ser vivo, em função da sua essência, realiza para se impor, afirmar e adaptar às
exigências do meio (Espinosa, 1992). O conatus está para Espinosa, como o design do corpo está
no âmbito da nossa proposta - Tanto um como o outro conceito pretendem advogar que qualquer
organismo age em função da sua natureza.
Com isto não queremos diminuir a dimensão cognitiva na tomada de decisão, nem descurar a
imporncia critica no ambiente na formação do design do corpo. Apenas pretendemos sublinhar
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A tomada de decisão no desporto: umaperspetivapropriocetiva
que a decisão é, extraordinariamente, restringida pela natureza de um corpo que manifesta uma
determinada intencionalidade e que o meio apenas pode moldar a formação de um corpo até os
limites que a natureza deste impuser.
A ação precede o pensamento
Como temos vindo a referir, o corpo possui um conhecimento pprio, pré-reflexivo, uma
intencionalidade espefica que manifesta, a nosso ver, as especificidades arquitetónicas do
corpo. Sugerimos que o corpo possui, desde o nascimento, um conhecimento muito próprio sobre
que movimentos e ações executar, antes e aquém de qualquer representação mental ou elabora-
ção simbólica, em certa medida até independentes de qualquer imagem mental (Cappuccio, 2010;
Merleau-Ponty, 1979), pelo menos nos primeiros anos de vida. A nosso ver, as imagens motoras
surgem após os mapas motores inatos e adquiridos serem ativados e estarem consolidados. Como
temos vindo a referir, a ativação dos córtices motores e parietais que se observa antes do sujeito
realizar uma ação, demonstra que a vontade de agir e a ação propriamente dita são processos
acoplados, não obstante poderem estar separados no tempo (Gallese & Corrado, 2010). A desco-
berta dos neurónios-espelho foi extremamente relevante porque demonstrou que os mesmos são
estruturas pré-motoras que são ativadas tanto quando o sujeito observa uma ação nos outros,
como quando a realiza ele mesmo. Isto significa que a perceção está, de certo modo, acoplada à
ação, pelo que quando o sujeito observa ou imagina uma ação, ele está, de certo modo, a repre-
sentar uma ação com o seu corpo (Delafield-Butt & Gangopadhyay, 2013; Gallese & Corrado, 2010;
Rizzolatti & Sinigaglia, 2007).
No entanto, apesar de serem processos inseparáveis, a ação parece preceder sempre a von-
tade consciente de agir. O neurocientista Marc Jeannerod demonstrou que antes do sujeito ter
consciência que tomou uma decisão de agarrar um objeto, cerca de 0,5 segundos antes o corpo já
iniciou movimentos e adaptações que visam agarrar esse objeto de um modo totalmente subcons-
ciente. Dito de outra forma, antes do sujeito conscientemente pensar em principiar uma ação, o
corpo já a iniciou, pelo que o processo decisional passa pelos seguintes estádios: 1-ação-2-inten-
ção-3-consciência da ação e da intenção (Bode et al., 2014; Fried et al., 2011; Gazzaniga, 2011;
Jeannerod, 2006; Soon, et al., 2013; Wegner, 2002). Por outras palavras, o sujeito está alheado de
quando o corpo inicia uma ação mas também quando ele decide uma ação, pelo que, na maior
parte das vezes, o corpo já está a agir sem que o individuo tenha consciência disso (Gallagher,
2006).
O corpo, segundo esta perspetiva, age diretamente através de uma representação proprio-
cetiva do organismo (Delafield-Butt & Gangopadhyay, 2013; Gallese & Corrado, 2010). Qualquer
movimento deliberado que o sujeito precise de realizar, ele precisa de ter um total controlo do
seu corpo, o que apenas é possibilitado pela proprioceção, como de resto o exemplo de Ian, acima
analisado, ilustra. Ou seja, sempre que o sujeito é deparado com uma situação em que tenha
de responder com determinadas ações, a proprioceção oferece-lhe todos os mapas motores de
um modo automático e totalmente subconsciente e, a par, as imagens motoras dessas ações – as
cópias aferentes - o que permite uma representação consciente do individuo em ação (Jeannerod,
2006). Por conseguinte, quando uma pessoa quer realizar uma ação, ela tem consciência proprio-
cetiva do seu corpo que a informa de todas as ações que pode realizar de uma forma automática,
sem qualquer esforço cognitivo. Por isso, perante uma affordace, a proprioceção oferece toda
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a informação necessária para resolver o problema através dos programas (ou mapas) motores
associados ao seu design corporal. A representação propriocetiva es sempre presente: ou de
uma forma indireta, quando certos ajustes automáticos são realizados pelo corpo em função de
informação processada entre os sensores do corpo e o meio, ou de uma forma direta, quando as
imagens mentais antecipam comandos motores já anteriormente realizados. Em ambos os casos
há um processamento propriocetivo do corpo que visa adaptar os movimentos do corpo às exi-
gências do meio, sendo que este pode ser um processo consciente (em forma de ideias moto-
ras) ou subconsciente (em forma de ações motoras) (Riemann & Lephart, 2002b) Por conseguinte,
mover o corpo é como seguir a sua intencionalidade (Merleau-Ponty, 1979).
A nossa proposta entronca na teoria sensorial-motora da ação defendida pelo filosofo Hubert
Dreyfus, que postula que a ação inicia-se automática e subconscientemente quando o corpo é
impelido a adaptar-se às exigências e necessidades do meio (Cappuccio, 2010; Dreyfus, 2000) –
uma ideia que, como vimos, tem afinidades com o conatus espinosano. Concordamos com este
ponto de vista mas acrescentamos que um determinado corpo responde ao meio em fuão do seu
design morfo-fisiologico, pelo que as affordances possuem valores distintos para corpos distintos.
O golo que Cristiano Ronaldo marcou frente à Juventus no dia 3 de Abril de 2018, de pontapé de
bicicleta, foi um comportamento realizado em resposta a uma oportunidade deão, porém, essa
affordance apenas foi um convite à ação para o corpo de Cristiano Ronaldo, não para qualquer
atleta nas mesmas circunstâncias. No mesmo sentido, quando um atleta de basquetebol, numa
situação em que tem de decidir entre passar ou lançar ao cesto, ele irá decidir, não só em função
da oportunidade que lhe parece ter maior sucesso mas, sobretudo, vai agir em conformidade com
as ações que o design do seu corpo consegue realizar com maior eficiência e sucesso. É o corpo
que decide, informa o cérebro e é representado mentalmente em forma de ideias. O corpo diz ao
rebro “estas são as minhas melhores faculdades, por isso sempre que o contexto exigir, usa-as
e o cérebro, não só cartografa os mapas motores necessários, como ainda produz as imagens
mentais correspondentes. Por outras palavras, quando o sujeito decide, ele-lo de acordo com
as potencialidades da natureza do seu corpo (Cappuccio, 2010; Dreyfus, 2000; Espinosa, 1992).
A perspetiva propriocetiva posta à prova
Consideremos o futebolista Lionel Messi. Ele tem um design corporal muito particular, por-
ventura, ainda mais distinto do que a maioria dos seus colegas de profissão. Desde logo, é mais
baixo do que a média dos jogadores de futebol profissionais por ter um défice de somatropina.
Apenas injetado com esta hormona em criaa e adolescente, Messi conseguiu crescer com um
ritmo mais aproximado do normal o que, mesmo assim, não o impediu de ser mais baixo do que
a maioria dos futebolistas. A sua estatura de 1,69 m permite-lhe ter um centro de gravidade mais
baixo, o que lhe confere vantagens ao nível da agilidade e do equilíbrio (Serrado, 2015). Simulta-
neamente, Messi deverá ter um sistema músculo-esquelético com uma percentagem alta de fibras
pidas o que, a par de ter um centro de gravidade mais baixo, lhe permite ter maior equilíbrio,
mudaas de direção mais repentinas, movimentos de corpo mais rápidos e uma velocidade de
arranque mais apurada. Por seu turno, a sua coordenação neuromuscular e a sua sensibilidade
propriocetiva (Missitzi et al., 2018; Serrado, 2023, in press), a par de outras características mor-
fo-fisiológicas, permitem-lhe ter movimentos extremamente eficientes e económicos, bem como
uma relação corporal rara com o objeto de jogo.
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A tomada de decisão no desporto: umaperspetivapropriocetiva
Ora, consideramos que estas características morfo-fisiológicas, em grande parte determina-
das geneticamente, estão gravadas nos sistemas propriocetivos de Messi – ou seja, o design do
seu corpo está acoplado na sua consciência propriocetiva. Desta forma, a sua consciência pro-
priocetiva possui mapas motores que lhe permitem agir de forma automática ao mesmo tempo
que promove imagens motoras que lhe permitem antecipar ações e agir de forma deliberada. Em
ambos os casos, é o corpo que decide. As affordances que lhe surgem estão, igualmente, depen-
dentes do design do seu corpo, pelo que nem todas as possíveis oportunidades se afiguram com a
mesma viabilidade. Certas oportunidades são mais oportunas que outras, dependendo da forma
como o corpo pode responder, com maior ou melhor eficiência, às exigências. Como refere o fi-
sofo Shaun Gallagher (2006), o sistema motor, em vez de ser determinado apenas pelo cérebro,
é modelado pelos músculos, tendões, flexibilidade, a sua relação geométrica com outros múscu-
los e articulações e a sua ativação, mais ou menos constante. O próprio design do corpo impõe
constrangimentos e possibilidades no cérebro e na forma como este trabalha, pelo que o cérebro
não pode processar informação que não seja traduzido pela periferia, nem comandar movimen-
tos que são fisicamente impossíveis de realizar pela periferia (Gallagher, 2006). Por isso, quando
Messi necessita de realizar uma ação, é o corpo que o informa qual (ou quais) a ação mais vanta-
josa através da consciência propriocetiva, seja de forma automática, seja através das copias afe-
rentes. O cérebro de Messi, ao criar um duplo-neuronal do corpo (Damásio, 2010) permite que as
ões do futebolista se realizem com eficiência, não obstante o cérebro precisar de um relario
extensivo sobre toda informação do design do corpo de Messi.
Um outro exemplo pode ser o esquiador Eero Mäntyranta. Nos Jogos Olímpicos de Inverno
de 1960 e 1964, Mäntyranta ganhou três medalhas de ouro medalhas no esqui cross-country. Ao
longo de sua carreira, foi suspeito de doping sanguíneo. 30 anos mais tarde, cientistas finlan-
deses testaram 200 membros de sua família e descobriram que 50 deles, incluindo Mäntyranta,
nasceram com uma rara mutação no gene HCP (Hybrid Cluster protein) que produz o recetor para
o hormônio eritropoietina o que lhe conferia vantagens cardiorrespiratórias, nomeadamente, ao
nível de uma maior quantidade de oxigénio que os seus músculos recebiam, o que permita a
Mäntyranta esquiar mais rápido e durante mais tempo sem se cansar (Nesser, 2009). Claro que o
sucesso de Mäntyranta não se reduz a este gene. Muito provavelmente, teria outras caracterís-
ticas morfo-fisiológicas particulares que, aliado ao gene, lhe permitiam ter maior sucesso que
os outros. De qualquer das formas, sugerimos que a sua maior capacidade cardiorrespiraria e
maior resistência muscular são características que determinavam muitas das decisões que tinha
que realizar nas suas provas. O design do seu corpo permitia-lhe tomar decisões que a outros
eram vedadas.
Outros exemplos que poderíamos dar são os atletas Usain Bolt ou Michael Phelps. O primeiro
é recordista mundial porque, entre outros fatores, o design do seu corpo possui um sistema mús-
culo-esquelético com uma grande quantidade de fibras curtas que lhe permite ter uma maior
velocidade motora. Vários estudos demonstram que o gene ACTN3 encontrado nos jamaicanos
confere-lhes uma vantagem única na corrida de velocidade devido à abundância de fibras curtas
que providencia no sistema músculo-esqueléticos (Nasser, 2009). A corrida de velocidade não
é propriamente uma prova que envolva muitas decisões. Contudo, consideramos que todas as
decisões que Bolt teve que tomar em provas de velocidade eram determinadas pelas suas carac-
terísticas morfo-fisiologicas. Por seu turno, Phelps tem mais de 1.93 metros de altura, 2 metros
de envergadura com os braços abertos, pés e mãos gigantes que funcionam como barbatanas,
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pernas pequenas e um tronco largo, o que lhe confere maior leveza nas suas braçadas e uma
rapidez dentro de água inigualável (Nesser, 2009). Tal como Bolt, Phelps nadava em função da
natureza do seu corpo, pelo que decidia com o corpo.
Em suma, o que sugerimos é que Lionel Messi, Eero Mäntyranta, Usain Bolt e Michael Phelpes,
entre outros, possuem (ou possuíam) vantagens em relação aos seus colegas de profissão porque,
fundamentalmente, têm um design corporal do ponto de vista morfo-fisiologico que, gravado e
manifestado na consciência propriocetiva, lhes permite decidir com maior sucesso, economia e
eficiência.
Conclusão
Neste artigo propomos uma teoria propriocetiva da decisão e da ação. Utilizando o desporto
como “laboratório”, defendemos que a decisão e a ação são iniciadas e modeladas pelo corpo,
pelo que a mente e a consciência possuem funções complementares à intenção propriocetiva.
Sugerimos que os sistemas propriocetivos contribuem com um sensing of ownership de um
corpo, o que promove a estabilidade necessária para o surgimento da consciência. A consciência
propriocetiva, sendo inata, informa o sujeito que possui um corpo – a sua refencia de existência
no mundo. Quando o ser humano nasce, as suas primeiras experiências são, fundamentalmente,
propriocetivas sob as quais as suas primeiras imagens motoras irão começar a emergir. À medida
que interage com as exigências do meio, o sujeito exprime os seus mapas motores ao mesmo
tempo que adquire mapas motores novos, não obstante sob um apertado controlo genético que
determina certas características morfo-psicológicas que são cruciais na decisão e na ação.
A consciência propriocetiva modela a ação no sentido em que exprime um determinado
design morfo-fisiológico. Este design, enraizado nos sistemas propriocetivos, determina a deci-
são porque corresponde a uma intenção corporal pre-reflexiva manifestada desde as primeiras
horas de vida, sob as quais depois os pensamentos e intenções mentais vão surgir. Por isso defen-
demos que a ação precede o pensamento. Porque advogamos que o pensamento de uma ação é
uma representação mental de um mapa motor que, não só se manifesta antes de qualquer tipo
de consciência concetual, como é regido por um apertado programa genético que constrange a
consciência propriocetiva e as imagens mentais que daí emergem.
Por fim, verificamos que os atletas decidem e agem em função do design do seu corpo e da
sua sensibilidade propriocetiva. Messi,ntyranta, Bolt ou Phelps, entre muitos outros, decidem
em função do seu corpo, da natureza do seu corpo e do design do seu corpo. As imagens, pen-
samentos e intenções conscientes que surgem nas suas mentes são expreses intelectuais das
intenções, capacidades e limitações das suas consciências propriocetivas.
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